7 Ideias espirituais que permitem o abuso e envergonham a vítima

7 Ideias espirituais que permitem o abuso e envergonham a vítima

A espiritualidade pode ser uma coisa linda, um bálsamo curador para um sobrevivente ferido por trauma. Acredito que, como sobreviventes, todos temos direito a nossas crenças e fé únicas.

No entanto, existem algumas crenças e princípios espirituais que podem ser distorcidos e utilizados para culpar ou envergonhar vítimas de abuso ou outras formas de trauma. É importante conhecer as abordagens espirituais que, ainda que sem esta intenção, possam atrapalhar, prejudicar, limitar ou impedir a jornada de cura autêntica de um sobrevivente, perpetuando um discurso que envergonha socialmente a vítima.

Aqui estão sete filosofias espirituais que podem ser utilizadas para culpar a vítima e permitir o abuso.

  1. A ideia de que não há separação.

Alguns gurus espirituais gostam de promover a ideia de que somos todos “um”. Isso é verdade até certo ponto: somos todos humanos, tendo uma experiência semelhante de consciência, vivendo em um mundo interconectado. O que afeta um, inevitavelmente afetará ao outro (a menos que sejam protegidos dos efeitos por uma bolha de privilégio).

No entanto, a ideia de que “agressor e vítima” são “um” (ou seja, são parte de um mesmo todo maior) tende a minimizar e negar a realidade do comportamento patológico do agressor.

A verdade é que, embora estejamos todos interconectados, os abusadores raramente respeitam essa interconexão sagrada; eles são mais propensos a serem “divisivos” e odiosos para reforçar seu falso senso de superioridade, suas agendas egoístas e sua falta de empatia ou compaixão por qualquer pessoa que não sejam eles mesmos.

Essa filosofia, quando usada para desculpar o agressor, nega abertamente o fato de que alguns agressores não têm capacidade de sentir empatia ou mostrar remorso pelo seu comportamento. A capacidade de sentir empatia é em grande parte aquilo que nos torna humanos.

Entretanto, a ideia de que “somos todos um” pode ser distorcida para justificar ataques horríveis à identidade da vítima e a erosão de suas crenças. Pode incitar a vítima a se reconciliar com o agressor, sob a ideia de que devemos tratar o agressor como tratamos todas as outras pessoas, ao invés de tratá-lo como um perpetrador que precisa ser responsabilizado por suas ações.

  1. Nossa dor é uma ilusão, criada por nosso pensamento ‘disfuncional’. 

Todos nós já ouvimos isso, especialmente nas abordagens espirituais da “Nova Era”. Nesse cenário, somos os criadores de nossa própria dor devido a pensamentos errôneos, porque “o amor é tudo o que existe”.

No entanto, o amor verdadeiro raramente existe em um relacionamento abusivo (a menos que venha da vítima), e nossas percepções do abuso não se devem simplesmente a pensamentos errôneos. Elas se devem a atos de violência mental e física extremamente prejudiciais.

Quaisquer que sejam suas crenças espirituais sobre esse assunto, a ideia de que a dor é uma ilusão criada pela separação inventada pela sua mente, quando usada para se referir a abuso, é extremamente negativa para sobreviventes de traumas graves. Sua dor não é um produto da sua imaginação.

É verdade que temos o arbítrio para fazer escolhas que nos causam dor ou diminuem nossa dor. Até certo ponto, também podemos controlar nossos pensamentos e comportamentos. No entanto, quando se trata de trauma, mudar apenas nossos pensamentos pode não ser o suficiente para curar traumas complexos. Muitas vezes é preciso curar no nível da mente, do corpo e do espírito, usando métodos tradicionais e alternativos, para realmente superar os efeitos do abuso (e mesmo assim, a cura não tem prazo definido).

Dizer que a dor é uma ilusão é uma desculpa para não responsabilizar os agressores por não mudarem seu comportamento abusivo; é culpar e envergonhar a vítima, e não contribui em nada para melhorar a sociedade como um todo.

  1. O perdão é obrigatório em todas as situações, e em todos os contextos.

O perdão certamente tem seus benefícios, mas para alguns sobreviventes que tiveram suas escolhas roubadas, pode ser traumatizante perdoar um agressor que não demonstra remorso; também é traumatizante ser induzido ou forçado pela sociedade (ou pela religião) a fazê-lo, quando o perdão deveria ser sempre uma escolha pessoal. Torná-lo obrigatório é muitas vezes prematuro e contraproducente.

Os sobreviventes perdoarão se e quando estiverem prontos. Geralmente depois de terem processado seus traumas de maneira saudável. Forçá-los a perdoar rapidamente, ou quando eles não estão dispostos, devido a essa crença espiritual de que o perdão magicamente o torna uma pessoa melhor, na verdade impede seu processo de cura e corrói a integridade de suas escolhas.

  1. O ego deve ser completamente erradicado para alcançar a felicidade. 

O que muitas comunidades espirituais chamam de “ego” consiste em emoções humanas autênticas que são muito importantes. Elas precisam ser reconhecidas, validadas, processadas e canalizadas de formas mais saudáveis.

Embora o ego seja muitas vezes denegrido como a raiz de todo mal, a verdade é que as emoções associadas ao “ego” têm raízes indispensáveis ao processo de cura e podem ser usadas para cultivar a liberdade emocional. Reconhecer as emoções associadas à definição espiritual de “ego” pode ser libertador para o sobrevivente de abuso que foi ensinado que suas necessidades, sentimentos e direitos básicos não importam.

Muitas comunidades espirituais degradam o “pensamento baseado no medo” do ego, mas o fato é que às vezes precisamos do medo para avaliar nosso pressentimento intuitivo sobre as intenções de alguém; precisamos da raiva para nos lembrar quando estamos sendo tratados injustamente. Rejeitar qualquer coisa que não seja “amor” como ego, e dizer que é sempre prejudicial, é falso e contraproducente.

  1. O que você vê no outro existe em você. 

Ocasionalmente, isso é verdade, mas simplesmente não funciona quando se trata da comunidade de sobreviventes de abuso como um todo. É, em essência, uma falsa equivalência que compara o abusador à vítima de forma prejudicial e reorienta o foco para as más qualidades da vítima, ao invés do perpetrador.

É verdade que às vezes podemos inconscientemente gravitar em torno de pessoas que representam o que as comunidades espirituais e psicológicas chamam de nossos “eus sombrios”, partes de nossas identidades que ocultamos ou sublimamos. Todo ser humano, em algum momento, também projetou suas más qualidades nos outros.

No entanto, essa filosofia é usada com muita frequência para fabricar semelhanças entre agressor e vítima onde não há, para desviar o foco do agressor e, em vez disso, responsabilizar a vítima por qualidades que ela não possui.

  1. Nós “atraímos” o abusador, então temos que assumir a responsabilidade por sermos abusados.

Embora eu acredite muito na ideia de arbítrio e empoderamento, eu simplesmente não consigo tolerar a ideia de culpar a vítima pelo abuso que sofreu. Os abusadores manipulam, rebaixam e menosprezam os outros, independentemente de quem sejam; independentes ou co-dependentes, ricos ou pobres, extrovertidos ou introvertidos, felizes ou deprimidos. Eles visam as vítimas devido à sua capacidade de empatia, não por causa de suas deficiências pessoais, carências ou traços de caráter.

Se a vítima teve traumas anteriores que a   ‘programaram’ ou ‘prepararam’ para o abuso, isso ainda não justifica o abuso; na verdade, expõe mais ainda a “doença” do agressor por traumatizar uma vítima que já foi vitimizada.

  1. Nunca somos vítimas – criamos tudo. 

Não me interpretem mal: gosto da ideia de que os sobreviventes podem criar uma nova realidade para si mesmos, fortalecer-se e reconstruir suas vidas, mais vitoriosos do que nunca. Não há nada de errado em se imaginar em um futuro melhor e tomar as medidas necessárias para atingir seus objetivos. Você é digno da melhor vida possível.

No entanto, quando essa ideia é usada para culpar a vítima pelas ações do agressor, ela se torna extremamente problemática. Quando a sociedade se concentra em perguntar à vítima o que foi que ela “fez” para criar essa situação, em vez de mostrar compaixão, teremos cada vez mais sobreviventes permanecendo em silêncio sobre o abuso.

As vítimas já são informadas por seu agressor de que o abuso é todo por culpa delas – a última coisa de que precisam é que a sociedade concorde com ele.

Em vez de colocar a culpa onde ela realmente pertence (no perpetrador), essa filosofia descarta o fato de que a maioria das vítimas não vê o verdadeiro eu de um agressor até que já tenha investido no relacionamento. Essa filosofia minimiza o impacto do abuso crônico na auto-estima de um sobrevivente, seu arbítrio e sua capacidade de abandonar um agressor com quem desenvolveu um vínculo traumático.

 

CONCLUSÃO

Independentemente de quais sejam suas crenças espirituais, vamos colocá-las em bom uso. Vamos estender a ideia de interconexão para ajudar as vítimas que sofrem todos os dias com a realidade do abuso verbal, emocional, físico e sexual. Vamos parar de deixar os agressores escaparem e permitir seu comportamento. Isso não é bom nem para a vítima NEM para o agressor, e é possível mostrar compaixão à distância. Vamos parar de nos dessensibilizar sobre o impacto traumático do abuso e parar de policiar os sobreviventes que falam a verdade sobre isso.

Não há nada mais compassivo e autenticamente espiritual do que ajudar aqueles que realmente precisam. Não há nada mais compassivo e empático do que responsabilizar as pessoas que tem comportamentos que destroem vidas. Vamos praticar a espiritualidade autêntica – o tipo que celebra a empatia pelos abusados, que permite que os sobreviventes tenham sua própria jornada de cura em seus próprios termos e crie um mundo mais seguro para todos nós.

Por: Shahida Arabi

 

Tradução e adaptação por: Silvia Rawicz

Texto livremente adaptado de Shahida Arabi, autora de Power: Surviving and Thriving After Narcissistic Abuse e do livro de poesia She Who Destroys the Light . Fonte: https://thoughtcatalog.com/shahida-arabi/2017/01/7-spiritual-ideas-that-enable-abuse-and-shame-the-victim/