Convivendo com o perigo

Por mais incrível que possa parecer, os psicopatas estão entre nós e, pelo menos na aparência, não se distinguem das pessoas comuns. Sendo assim, o que fazer para evitar suas ações e o que acontece com as suas vítimas?

Há muitos artigos, entrevistas, livros que dão enfoque às características de psicopatas. Contudo, quase ninguém aborda o assunto do que acontece com a vítima e como se cai nessa armadilha. A primeira notícia que surpreende é que os psicopatas andam soltos entre nós e, aparentemente, em nada se distinguem das pessoas comuns, pois a imagem do serial killer que a maioria tem se aplica somente a uma pequena porcentagem dos psicopatas existentes na nossa sociedade. Vinte por cento dos presidiários são psicopatas, segundo a dra. Hilda Morana, psiquiatra, perita forense em diagnóstico de psicopatas. Mas um número enorme está fora, de 3% a 5% da população, o que significa que em cada grupo de 30 pode haver um.

Pode ser seu vizinho, seu advogado, seu chefe, já que o psicopata se coloca em todas as posições favoráveis ao controle, manipulação e exploração dos outros. Você pode estar dormindo com o seu inimigo. A desestruturação na família pode ter a causa subjacente, velada, de um membro psicopata. A desumanização de uma empresa pode ser também a ação deletéria de um psicopata, que se colocou em cargo de poder.

Psicopata também vai à escola e, não resta dúvida, devido à porcentagem mencionada, de que em cada escola haja no mínimo um, representando um perigo ambulante aos alunos e professores nas salas de aula, nos corredores, no recreio, nos banheiros. Quais os perigos que uma criança psicopata oferece? Desde roubo, bullying (nem todo bully é psicopata, mas todo psicopata é bully), fomentar brigas, conflitos, machucar “sem querer” os colegas, até incendiar a secretaria da escola para queimar um boletim que ele não gostou.

 Com o aprendizado, o amadurecimento, o psicopata vai adquirindo mais conhecimento para realizar suas manobras, vai sofisticando suas táticas, procura profissões e conhecimento dos seres humanos. Fazer Psicoterapia lhe fornece mais informações para driblar a guarda dos especialistas, já que nada muda sua condição. Até hoje não se encontrou cura para esse distúrbio de personalidade, que nem é considerado doença na CID– 10, onde figura sob o número 60.2.

Traumas de infância, maus-tratos, violência não geram um psicopata. Isso gera psicoses, neuroses, mas não psicopatia. Um psicopata nasce psicopata e morre psicopata. Não aprende com a experiência, não aprende com punição, reincide, repete sempre o mesmo script. Por não ter emoções procura excitação constante para atenuar o tédio terrível no qual vive. Uma conduta errática que desestabiliza qualquer empreendimento e impede uma construção permanente em todas as áreas da vida: afetiva, financeira, profissional, social. A exacerbação do egoísmo leva à megalomania. Os outros pouco ou nada importam, só ele. E se considera superior. A dificuldade de ser reconhecido como tal aumenta sua periculosidade e facilita sua penetração em todos os meios que escolhe explorar.

 

Entrevista com o psiquiatra americano Allen Frances

Na grande maioria dos casos, a vítima começa a desconfiar que esteve na mira de um deles depois que já caiu na armadilha, depois que sua vida financeira, profissional, pessoal, social, afetiva foi destruída, depois que já está sugada e reduzida a um trapo humano. Isso quando não pereceu de vez, ou por meio de uma emboscada bem planejada e disfarçada, sem pistas que levem ao verdadeiro autor, como um aparente acidente de carro, ou no aparente suicídio, quando o psicopata usou as mãos da própria vítima para exterminá-la. Não estão seguros, tampouco, os familiares e os amigos da vítima, que podem ser atacados por substituição.

 

Alerta

Alertar a sociedade é de urgente utilidade pública. O primeiro passo é informar e esclarecer. Para a grande maioria das pessoas é quase impossível conceber que um ser humano, aparentemente humano, não tenha sentimentos humanos. Um ser para quem a dor do outro não importa. Um ser que olha para o outro não como um semelhante, mas como um objeto utilitário. Uma criatura que é totalmente amoral. É quase impossível conceber que por trás daquela máscara encantadora, inteligente, genial, sedutora, bondosa, honesta se esconde uma criatura tenebrosa.

Quando se olha atentamente para a expressão de um psicopata tem-se a perturbadora sensação de que não tem ninguém em casa. É quase como se olhássemos para um robô bem fabricado. Tanto é que um psicopata não sabe dançar. Pode repetir mecanicamente e até à perfeição os movimentos da dança, mas, se você observar bem, não há sentimento, por isso é sem graça.

Como não valoriza nada, nem sabe o que são valores (sabe apenas teoricamente), roubar, mentir, usar, descartar, manipular são ações inconsequentes para ele. É sua atividade preferida e natural. Mesmo quando dizer a verdade poderia lhe ser mais vantajoso, não o faz pelo prazer do domínio sobre o outro que a mentira lhe proporciona.

Não tem problema algum em ser pego em flagrante na mentira. Inventa qualquer desculpa e continua andando. É importante prestar atenção nas inconsistências. O psicopata pode dizer que gosta de nadar e, em outra ocasião, que nunca entrou numa piscina, no mar ou no rio. Psicopata também erra. Embora jamais admita. E os culpados sempre são os outros, nunca ele.

Um efeito colateral da mentira é a capacidade inconcebível de convencer os outros, que o psicopata exerce à vontade. Seu discurso pode levar à ovação delirante da plateia, mas, se prestar atenção, se vê que é um discurso superficial, não há vivência que lhe dê suporte, só palavras jogadas habilmente. Ele as usa como arma para conseguir o que quer, inclusive enlouquecer a vítima com uma salada de palavras. Algo aparentemente lógico, aparentemente encadeado, mas sem nexo algum. Outra arma preferida é a atração sexual, que ele e principalmente elas usam à perfeição, manipulando a energia de seu alvo a ponto de submetê-lo totalmente. Embora a maioria dos psicopatas seja homem, há muita mulher que apresenta psicopatia.

O alvo preferido do psicopata é a pessoa bondosa, delicada, sensível, carente, fragilizada por algum trauma recente, uma perda, com uma necessidade premente. Ele entra por essa brecha como o salvador da pátria. Seu alvo é alguém que pode proporcionar-lhe alguma vantagem como dinheiro, sexo, poder, status, salvo-conduto de respeitabilidade, todas elas juntas ou uma ou outra que responda à sua necessidade do momento. Como o psicopata é um parasita, jamais fica sem uma fonte de abastecimento. Antes de largar a fonte atual à beira de se esgotar, já assegura a próxima. E assim vai.

 

 Avisos ignorados

As pessoas estão sempre prontas a relevar pequenos avisos de que algo pode estar errado. Percebem uma reação emocional no mínimo esquisita, que não combina com o estímulo nem em qualidade nem em intensidade. Detectam incoerências, suspeitam de inverdades, mas colocam essas coisas na conta das esquisitices e neuroses comuns a todos nós. E tratam o psicopata como se fosse um ser humano. É justamente aí que mora o maior perigo. O psicopata não tem reação de ser humano, como compaixão, solidariedade, empatia, respeito, responsabilidade, amor. Finge. E se aproveita da capacidade dos seres humanos de tudo isso para alistá-los em sua defesa, fazendo-os darem-lhe dinheiro, afeto, tempo, compreensão, desculpando-o por alguns “deslizes” e, principalmente, compadecendo-se pelos traumas que ele viveu, os abusos e as injustiças que sofreu, as dificuldades pelas quais passou, tudo inventado por ele no melhor estilo de uma obra de ficção.

Estuda sua vítima fria e calculadamente pelo tempo necessário, juntando elementos para esboçar o seu plano de ação. Como o leão estuda um veado que quer caçar para comer, estuda seus gostos, suas manias, seu comportamento, seus medos, suas vulnerabilidades, seus desejos mais secretos. Uma vez construído o plano de ação, passa à execução de maneira calculada, e mantém a farsa pelo tempo necessário até obter o que deseja. Então, descarta o doador forçado sem um pingo de remorso.

Existe protocolo para atender vítima de sequestro, de estupro, de violência doméstica, vítima de estelionato, de falcatrua, de roubo, mas não existe para atender vítima de psicopata. Não existe, tampouco, proteção legal, não há advogados especializados em sua defesa e, na grande maioria dos casos, o psicopata enrola até o juiz e sai ileso do caso, virando tudo do avesso, transformando-se em vítima quando é o algoz e descarregando o ônus em cima da vítima real.

Os profissionais de saúde que recebem essas vítimas em seus consultórios, na grande maioria, não sabem pelo que realmente essa pessoa passou e o que ela precisa para começar a se recuperar do tsunami que devastou sua vida. A vítima chega incompreendida até por sua família, seus amigos, que acabam acusando-a de ter sido responsável por ter “confiado” no psicopata. É quase impossível não cair na armadilha uma vez que o psicopata decida capturar a pessoa.

Numa relação afetiva, a primeira fase, da conquista, é algo que a vítima jamais experienciou igual na vida. Ela se torna o centro de atenções dele, é cumulada de elogios presentes, toda espécie de mimos, bajulações, a tal ponto que a vítima não enxerga mais nada a não ser o príncipe encantado que se materializou na sua frente. Todos os indícios de possíveis incongruências, de possíveis inverdades são camuflados pelos fogos de artifício. Deixa para lá todas as anteriores, horríveis, que nem chegam aos seus pés.  Ela é finalmente a mulher que ele esperou a vida toda (ou vice e versa). Deve ser um encontro planejado nos céus, que agora finalmente se realiza.

A vítima se entrega aos pedaços até se entregar inteira. Passa a senha da sua conta bancária, transfere para o nome dele suas propriedades, faz-lhe uma procuração conferindo plenos poderes. Deixa-o usar todos seus contatos profissionais, o psicopata se intromete na família da vítima a ponto de criar conflitos insolúveis, toma conta das amizades e afasta todas, eliminando assim o sistema de suporte da vítima. E a lábia dele é tão convincente que não há dúvida de que esteja fazendo tudo porque ama e quer o bem da vítima. Pronto, agora que o alvo está sob seu domínio, ­fim da primeira fase.

Na segunda fase, o psicopata começa a mudar a máscara. Conseguiu tudo que queria. Está entediado, precisa de novidade. Já não se mostra tão deslumbrado com a vítima. Aparecem insatisfações aqui e ali, o que antes era fantástico passa a ser defeito. Se antes ele adorava a comida feita pela vítima, agora ele prefere comer fora.

Ele se mostra infeliz e, claro, a culpa toda é transmitida ao alvo. A vítima se esmera mais e mais para agradar e ter de volta aquele homem maravilhoso da primeira fase. Mas isso não acontece. Aparecem pequenos indícios da fase boa aqui e ali, para logo voltar infeliz e perturbado.

 

Culpa do que?

Os maus-tratos são entendidos pela vítima como “merecidos”. Isso a faz ficar cada vez mais subjugada a ele, em estado de alerta. A vítima deixa passar todas as incongruências, pede desculpas por algo que não fez, tenta reparar algo que nem entende direito o que é.

O psicopata costuma deixar pistas aqui e ali da presença de outras mulheres na vida dele. Mesmo após tantos indícios, a vítima reflete como é possível ter dúvidas sobre um homem tão íntegro e honesto? Ao mesmo tempo em que se sente enlouquecer com a situação.

A segunda fase se conclui com a vítima transformada num espectro ambulante. Essa tortura psicológica esvaiu suas forças vitais. As pessoas não a reconhecem. O que foi que aconteceu? A vítima então entra em um ciclo perigoso de estresse psicológico. Torna-se incapaz de funcionar no trabalho, nas tarefas mais corriqueiras. Há a tentativa de conversar, de horas e horas, que não chegam a lugar algum. E esse esvaziamento e sofrimento psicológico são um deleite de diversão para o psicopata.

 

Descarte

Então, na terceira fase se inicia o descarte. Ele já encontrou sua próxima vítima, e vai despersonalizando a vítima anterior, vai convencendo que nada presta nela. O jogo então se aprofunda e o psicopata começa a acusar a vítima de problemas psicológicos, com mania de ver coisas que não existem. A vítima se encontra tão dilacerada que aceita ir ao médico para se tratar.

Ele se ausenta cada vez mais longamente, sem dizer para onde vai, ou dizendo que precisa espairecer, descansar das lamúrias da vítima, que nesse ponto está realmente em pedaços. Enquanto ele prepara o terreno de outro alvo, mantém a anterior sob controle, tendo momentos de carinho e atenção que fazem lembrar do homem da primeira fase, fazendo uma verdadeira confusão mental. As coisas não combinam.

Há casos em que a vítima se encontra tão abalada que chega a pensar em suicídio e muitos se concretizam. E então acontece a separação da maneira mais conveniente para ele. Ou ele vai embora, ou faz o alvo sentir-se culpado por mandá-lo embora, essa é só mais uma culpa para a coleção. Ele se vai, sem nenhum compromisso em resolver pendências. A vítima fica, então, com a vida totalmente depredada. Por um fio. Lembra-se do tsunami?

Descem as cortinas sobre o palco, para reabrir logo mais com novos coadjuvantes, mas com o mesmo ator principal. Um novo cenário e com novas circunstâncias. A peça se repete sempre igual, tantas vezes quantas couberem no período de vida de cada psicopata.

Nesse estado aparece a vítima no consultório do profissional de saúde. A grande maioria dos profissionais, assim como dos familiares e amigos, não sabe ajudar. Dizer para esquecer? Perdoar? Dar a volta por cima? Refazer a vida? Impossível. Esquecer, só se for por lobotomia ou amnésia. A vítima sofreu estupro da alma.

O terapeuta precisa validar primeiro o sofrimento da paciente, que é inconcebível, alucinante. Ela conviveu com um predador da espécie humana. O terapeuta precisa jogar uma corda no fundo do poço para começar a içá-la. Essa corda pode ser uma frase simples, repetida até a vítima conseguir escutá-la: “Você não fez nada de errado”.

A vítima precisa botar para fora toda a indignação, humilhação acumulada, precisa falar, falar, para ir se convencendo de que não está louca, que não é tudo culpa dela, que o psicopata existe, que há um script que todos eles seguem com pequenas variações. A vítima precisa entender o que é um psicopata. Ela jamais poderia imaginar conviver com um.

 

Sobrevivente

A vítima precisa se transformar em sobrevivente. Sobrevivente se cura, vítima não. Sobrevivente já conseguiu manter a cabeça fora da água e se agarrou a alguma tábua ou encontrou algum lugar para pisar. Nessas horas é fundamental a compreensão, uma mão amiga, um colo aconchegante. É fundamental também o cuidado com a saúde física, pois todo esse estresse e toda essa tortura psicológica cobram do corpo.

É preciso saber lidar com as inúmeras perdas. A não ser que haja uma boa defesa jurídica, o dinheiro jamais será devolvido, a energia vital se foi, as relações sociais e familiares abaladas exigirão um bom esforço para serem recuperadas, o trabalho, a profissão, tudo terá que ser reconstruído e, principalmente, ele jamais reconhecerá que fez mal a alguém e muito menos fará alguma coisa para repará-lo.

Em alguns casos a situação se agrava quando há filhos dessa relação e a criança é usada para torturar ainda mais a vítima, que terá que andar sobre brasas, engolir canivetes, driblar dardos em chamas para conseguir livrar ela e o filho das armadilhas.

As vítimas que passam por essas situações chegam ao fundo do poço. Poço é uma imagem semelhante ao canal de nascimento. Há a morte simbólica e o profissional deve mostrar o caminho para o renascimento. Um verdadeiro renascimento!

Por Júlia Bárány

Júlia Bárány é psicanalista formada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise Integrativa, em Educação Artística pela FAAP e em Pedagogia Waldorf pelo Seminário da Escola Rudolf Steiner. Tornou-se sócia-fundadora, editora, diretora editorial e tradutora na Editora Mercuryo e atualmente na Barany Editora. Estudou assuntos ligados à metafísica, saúde e bem-estar. Para mais informações, acesse: http://baranyeditora.com.br
Revista Psique Ed. 117
Fonte: http://psique.uol.com.br/convivendo-com-o-perigo/