Alguma vez lhe aconteceu ter uma relação amorosa que se iniciou como um conto de fadas, em que a outra parte parecia ser encantadora, sedutora, saída de um conto de fadas?
Passando algum tempo, passa a ser uma relação marcada por conflitos, em que se sente atacado e afetado na sua auto-estima, sem motivo aparente, e caso reclamasse, sofria o “tratamento do silencio” em que a outra parte, não respondia aos seus apelos à sua ansiedade e necessidades, o que tanto o incomodava?
Sentia que qualquer conflito, confronto, iriam causar uma retaliação desmedida, em que era manipulado, acreditando ter culpa de tudo do que estava a suceder?
Possivelmente estava numa relação com um perverso narcísico (p.n.).
Mas o que caracteriza uma relação com um p.n.?
O p.n. trata as relações como objetos para seu benefício pessoal, para o seu bem-estar. A relação é caracterizada por uma violência silenciosa, em que o p.n. agressor, se retira, em silêncio e é evasivo nas discussões, causando grande sofrimento à vítima, em silêncio…..e o agressor faz sentir que a culpa é desta, que assim, iliba o agressor da noção de culpa (Carvalho, 2009).
Muito manipulador, mente constantemente. Tem grande probabilidades a ter uma vida dupla.
Normalmente, a vitima demora tempo a perceber esta situação, a perceber que está envolta numa teia de manipulação, a qual não deseja, mas que vem ao longo do tempo fazendo ruir a sua auto-estima e paz interior (Carvalho, 2009).
O p.n. “fortalece o seu ego através da desvalorização do ego do outro” (Carvalho, 2009, p. 40).
Para este o outro merece as suas agressões, e que a vitima esteja à sua mercê (Carvalho, 2009).
O p.n. cria uma imagem falsa de “todo poderoso a ser usada no mundo, uma imagem sem falhas, sem o mínimo reflexo do vazio” (Eiguer, 1996, P. 64). Ou seja serve-se do outro, para satisfazer os seus fins. Manipula o outro para que se sinta culpado, com o objectivo de está a ser odiado pela vítima pelo uso e abuso que sofre (Carvalho, 20009).
“O perverso narcísico acredita (…) que, para sobreviver, é preciso usar o outro, sugá-lo, negá-lo, desrespeitá-lo, caso contrário o outro não aceitava submeter-se a seu domínio” (Carvalho, 2009, P. 41). Deste modo, “um indivíduo pode conseguir destruir o outro por um processo de contínuo e atormentador assédio” (Hirigoyen, 2002, P.9).
Esta agressão ocorre sobretudo com momentos de crise, atacando os pontos sensíveis da vítima que fica narcisicamente abalada, “pode chegar à depressão, ao suicídio, ou à morte por doença degenerativa grave” (Carvalho, 2009, P. 43).
Características da vítima.
As vítimas são, de forma geral, de “perfil reparador, com força, vitalidade e vivacidade, que preza a tolerância e crê “entender” o agressor que cobra de si mesma não se abalar tão fortemente quando se abala com as agressões sofridas” (Carvalho, 2009, P. 43).
Aguenta, estoicamente, em silêncio este sofrimento, crescente atroz e destrutivo.
“(…) a vítima (…) não tem necessidade psíquica do sofrimento, mas sim acredita que é forte o suficiente para entender o agressor e vir a não sofrer; e uma vez constatada a reincidência do seu sofrimento, acredita que conseguirá convencer o agressor de que não é bom para ninguém que ele agrida” (Carvalho, 2009, P. 43). É normal, quando a relação sofre uma rutura, física, emocional e cognitiva, sentir um grande alívio (Carvalho, 2009).
Mas porque é que aceita este sofrimento?
Devido a um grau de masoquismo que advêm da “percepção do sofrimento infligido como invocando um desafio a ser aceite e vencido, um obstáculo a ser superado” (Carvalho, 2009, P. 43).
O sofrimento engrandece o ego da vítima, é sentido como um desafio à sua energia (Carvalho, 2009).
Não se trata do caso de gostar da dor, mas sim em sentir prazer no desafio representado pela agressão sentida.
Claramente, existe um desejo de transformar o outro, em fazê-lo ver e sentir que as agressões são injustificadas e, mais do que isso, mudar o outro. Fazer com que o p.n. aceite a vítima….esta situação prolonga-se de forma indefinida, esgotando e minando as forças, a vida da vítima….é aqui que surge o paradoxo, em que a vítima se deixa enredar e se torna vítima, por julgar-se forte, capaz de suportar o sofrimento em consequência das agressões injustas e almejar o amor do agressor, a sua aceitação….enquanto que o p.n. acena com este amor, “seduzindo-a mais do que supostamente a ama” (Carvalho, 2009 P. 44).
Este efetua um jogo perverso dá a entender à vítima que a ama, de forma progressivamente “ambígua, ambivalente, fugidia. E em alternar entre seduzir a vítima, e, nos momentos de crise, agredi-la fortemente com palavras que tocam seus pontos fracos e a desestabilizam” (Carvalho, 2009, P. 44).
Porque é que as vítimas obedecem?
“Primeiro para dar prazer ao seu parceiro, […] pois ele tem um ar infeliz. Depois, […] por medo” (Hirigoyen, 2002, P. 110).
Nem que seja medo de mau humor. “A submissão é aceite como necessidade de reconhecimento, reconhecimento esse que ou não surge ou surge de forma mitigada (Carvalho, 2009). Com danos incalculáveis para a auto-estima.
É normal e consequência da chantagem do p.n. que dá muito pouco e exige muito. “se eu me mostrar mais dócil, quem sabe ele poderá, enfim me apreciar ou me amar. Busca sem fim, pois o outro não estará jamais satisfeito” (Carvalho, 2009, P. 111).
Ou para evitar qualquer constrangimento e o consequente conflito tão desgastante, não é sempre assim?
“O agressor mantém no outro uma tensão que equivale a um estado de estresse permanente” (Hirigoyen, 2002, P. 111).
Como deve imaginar, pelo que foi exposto até então, os danos psicológicos e emocionais para a vítima, são imensos. O ego da vítima não é fraco, é forte mas carente da aprovação no sentido em que a vítima dá, mas quer receber. Decorrendo do facto do p.n. acreditar que o outro, a mãe, o mundo têm uma dívida impagável para com ele….
“Quanto mais um se dedica ao outro, mais o outro despreza essa devoção. E trata de manter a relação manipulando-a através de assédio, aceite pelo outro na intenção de superá-lo, de vencer as dificuldades da relação e se fazer amar” (Carvalho, 2009, P. 45).
O que acontece realmente?
Enquanto a vítima esquece e perdoa todas as agressões, esforçando-se, cada vez mais, o p.n. aumenta a sua visão perversa….as agressões sucedem-se em escalada. Acreditando ser a vítima a culpada das agressões, sendo assim estas justificáveis, principalmente quando a vítima contesta, exige, confronta, é quando os ataques são mais intensos, mais danosos.
Esta é uma relação altamente desestruturante. Quando a vítima “obedece” a relação corre bem. Lembre-se que o p.n. é um sedutor….quando este sente que a vítima o contesta, ocorrem os ataques.
É desta forma que o perverso tem uma “incapacidade de considerar os outros como seres humanos” (Hirigoyen, 2002, P. 12), não passando de um meio, para atingir os seus fins.
Perversão narcísica e psicopatia.
É comum haver uma confusão de termos entre p.n. e psicopatia. Embora com comportamentos e consequências semelhantes (ambos são muito sedutores, manipuladores, instrumentais, sem empatia), e consequências igualmente desastrosas. Mas, existem diferenças entre ambos. O psicopata atua de forma instrumental, sem qualquer envolvimento emocional nem cognitivo. Usa os meios para atingir os fins. O p.n. acredita merecer um amor incomensurável, sem dar nada em troca. Ou melhor, destruindo, de forma parasitária a vítima para sobreviver.
“Como afirma Hirigoyen, é uma relação em que um deseja dar e o outro deseja não receber, mas tomar” (Carvalho, 2009, P. 49).
Como identificar um p.n.?
Aqui ficam algumas dicas:
- – Preste atenção às ambivalências discursivas. Por um lado grandioso, por outro tão auto-piedoso. Os argumentos são válidos? Há motivos reais?
- – Acha que a sua relação passou por fases de (I) sedução; (II) manipulação; (III) agressão?
- – Os ataques verbais fazem sentido? Avaliados de forma racional?
- – Quando há uma discussão é frequente ficar por exemplo uma semana sem dar notícias?
- – Nunca está satisfeito, as críticas minam a sua auto-estima?
- – A culpa é ou era sempre sua de todas as discussões?
- – Mente constantemente?
- – Nas discussões, torna-se evasivo, distante, reme-te se ao silêncio, impávido e sereno?
- – Tem uma vida dupla?
Pode ser o caso de estar numa relação com um p.n.
Numa relação normal, o que é desejável, é que ambas as partes se respeitem, potencializem e se fortaleçam…..cresçam em conjunto, se apoiem, se amem.
Se este for o seu caso, os meus parabéns seja feliz!
Por Carlos Filipe Saraiva
Autor do livro “Drogas: conhecer para prevenir”
Bibliografia:
Eiguer, A. (1996). Le pervers narcissique et son complice. Paris: Drunod.
Hirigoyen, M.F. (2002). Assédio: a violência perversa no cotiadiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Martins, A. (2009). Uma violência silenciosa: considerações sobre a perversão narcísica. Cadernos Psicanálise. Ano 31 nº 22 pp. 37-56.