O Filho “Bode Expiatório”

Narcisistas são os mestres da projeção. Ninguém é melhor em olhar diretamente para uma pessoa e não ver quem essa pessoa é, mas sim aquela que ele quer que seja. Quando uma mãe narcisista olha para seu filho, ela é capaz de ver muitas coisas: uma fonte de suprimento narcísico, um impedimento à sua ânsia de poder, a inconveniência dos sentimentos e necessidades da criança, uma série de aborrecimentos intoleráveis, limitações indesejadas e uma infinidade de outras possibilidades. Tudo isso, mas nunca a criança real.

Em uma família narcisista, os papéis disfuncionais são a norma, e as mães narcisistas são sempre as produtoras, diretoras e agentes de elenco da produção inteira. Os papéis a serem desempenhados, são atribuídos às crianças, muito antes que tenham idade suficiente para resistir à eles. Elas crescem dentro dos confins dessas limitações, e é só isso o que conhecem. É típico de pais com transtornos de personalidade, selecionarem pelo menos um “Filho de Ouro”, (o “mascote” da mamãe, que é favorecido, nunca é corrigido, e não “faz nada errado”), e pelo menos um “Filho Bode Expiatório” (sempre o culpado e o “errado”, que não “faz nada certo”).

Qual é a criança mais sensível? Qual criança lembra-lhe um pai odiado, ou um ex-cônjuge que se levantou contra ela, ou algo dentro de si mesma, que ela não pode aceitar? Qual é a que exige mais dela, seja intencionalmente, ou por causa das circunstâncias? Qual criança manifesta infelicidade com mais frequência, com as situações intoleráveis que ela cria? Qual delas é a mais vulnerável, ou a mais sincera? Em suma, qual dos filhos mais lhe incomoda?

Essa criança será feita de “bode expiatório”.

Este “bode expiatório” terá que carregar o grande peso da culpa, da vergonha, da raiva e da rejeição familiar, para que o resto possa mais facilmente manter os seus padrões de funcionamento doentios.

Essa criança será sempre e para sempre aquela que não é boa o suficiente, mesmo quando ela se destaca em alguma coisa. Na verdade, especialmente quando ela se destaca em alguma coisa. Essa criança vai sofrer mais humilhações, injustiças, calúnias e traições por trás das costas do que todo o resto da família juntos. Essa criança vai suportar os desgastes da disfunção familiar, de forma que os outros membros possam continuar a manter a imagem e parecer bem, apesar da toxicidade da família.

Como a narcisista não pode aceitar seus próprios defeitos, ela passa seus dias tentando convencer a si mesma de que tudo que ela faz é perfeito. Quando o seu transtorno de personalidade causa sofrimento no seio da família e os problemas dos seus filhos começam a refletir isso, a mãe narcisista é forçada a fazer uma escolha. Ela deve reconhecer que está cometendo erros que estão afetando negativamente seus filhos, ou ela deve tentar convencer à si mesma e aos outros de que os problemas não estão vindo dela, mas sim de outra fonte. Essa última é a opção que a narcisista sempre e infalivelmente seleciona. Em sua mente, culpando o outro, ela se exime de qualquer delito, e pode continuar a acreditar – e se esforçar para convencer os outros – que ela é, de fato, perfeita. Mas primeiro, ela precisa ter alguém à quem culpar.

Esse alguém será o “bode expiatório”.

O “bode expiatório” é aquele que alivia a mãe narcisista (e em última análise, toda a família), da culpa, da vergonha e dos sentimentos de inadequação. O “bode expiatório” é o amortecedor, aquele que suaviza o choque contra a dura realidade de que há algo de muito errado com a família. Ele é a “lixeira” de depósito aonde todas as questões indesejáveis são despejadas.

O papel do “bode expiatório” facilita a negação existente na família. A mãe narcisista ensina os outros filhos (que não são “bode expiatório”) a aceitarem e a apoiarem o papel consignado ao filho “bode expiatório”, afirmando, gratificando e reforçando as percepções dos outros filhos (manipuladas por ela), de que sempre que algo está errado, a culpa é para ser colocada no “bode expiatório”.

As crianças se adaptam rapidamente à essas funções, e aprendem que se não quiserem se responsabilizar por alguma coisa, elas só precisam  acusar o irmão ou irmã “bode expiatório”, cujo caso nunca será suficiente ou devidamente ouvido, e cuja “culpa” será prontamente acolhida. Uma vez que os outros membros da família tenham se aperfeiçoado nesta atitude, eles serão muito mais livres para fazer coisas censuráveis, sem sofrer consequências negativas.

Para uma criança indefesa, que é colocada no papel de “bode expiatório”, o ônus de ser rotulada como “má” não importa o que ela faça, é extremamente pesado. Ela logo descobre que ela não pode vencer, e que não há sentido em lutar para melhorar a opinião que sua família tem sobre ela, porque isso simplesmente não pode ser permitido que aconteça.

Esse é o ponto de desespero em que alguns “bodes expiatórios” começam a fazer o papel de “semente ruim”, porque suas falhas serão premiadas, consciente ou inconscientemente. Na verdade, geralmente, quanto mais o “bode expiatório” se comportar e funcionar bem, mais ele será severamente oprimido, porque fazer isso ameaça o rotulo de “ruim” que a mãe lhe colocou. Isso causa sofrimento psicológico na mãe narcisista, pois sugere que sua crença está errada. Para uma narcisista, entreter essa possibilidade é completamente intolerável.

Em uma tentativa desesperada de reduzir a opressão e o escárnio da mãe narcisista, o “bode expiatório” pode sucumbir aos papéis de fracassado, de perturbado, de perdedor, de ovelha negra ou de encrenqueiro. Isto oferece a mãe, exatamente aquilo que a sua doença mental faz com que ache que deva ter – um objeto externo sobre o qual colocar a culpa, para que ela possa continuar com a fantasia reconfortante de que não há nada de errado com ela mesma ou com a sua família como um todo.

Para o “bode expiatório”, haverá descaso e/ou punição quando ele estiver indo bem, e uma “recompensa” de receber menos abusos ou até mesmo expressões de apoio, se ele não prosperar e aceitar o seu papel (de fracassado).

Muitos “bodes expiatórios” relatam que a única vez que sentiram o apoio de suas mães (caso tenha existido), foi quando o ato de apoio promovia e reforçava sua “inferioridade”, “disfunção” ou “fraqueza”.

Em um esforço para aliviar de alguma forma o sofrimento causado pela ira da mãe narcisista, o “bode expiatório” finalmente cede e concorda com a avaliação da família de que ele é inferior e digno de culpa. Ele interioriza a crença de que é intrinsecamente ruim, inútil, defeituoso, e acredita que todos aqueles com quem ele entra em contato podem ver isso claramente e que vão rejeitá-lo tão completamente quanto a sua família o faz.

Ele vai levar consigo sinais reveladores de profunda inferioridade ao parque, à escola, ao trabalho, à sua comunidade e aos seus relacionamentos.

Frequentemente, porque a psique do “bode expiatório” está sobrecarregada com o ônus de uma enorme sensação de inferioridade imutável, seu comportamento inicial, manias, hábitos de fala, e até mesmo sua postura vai ostentar a marca inconfundível de uma vítima de difamação, aleijada pela vergonha e pela culpa.

Ele é o único que não pode “falar mais alto”, e isto é imediatamente óbvio para todos com quem ele entra em contato. Tendo muita experiência no papel de “bode expiatório”, ele se torna o alvo perfeito para o comportamento abusivo. Ele é o único que os outros intuitivamente sabem que não vai revidar. Ele é o alvo fácil, o “trouxa”, a “pele”. Ele vai ser tornar um pária, intimidado, marginalizado e solitário. O encrenqueiro que é rotineiramente punido, ou um objeto de riso.

O “bode expiatório” está acostumado a aceitar a culpa pelos problemas em seus relacionamentos interpessoais. Ele foi diligentemente condicionado a acreditar que se ELE pudesse ter feito melhor, os desafios que enfrenta nas relações das quais ele participa iriam se dissolver.

Apesar disso não ser verdade, ele só tem os padrões de sua própria família para usar como modelo para as relações adultas. Ele tolera facilmente parceiros emocionalmente irresponsáveis, que esperam que ele suporte muitas obrigações ou que lhe passam a mensagem de que as dificuldades do relacionamento são basicamente por culpa dele.

Não é incomum que o “bode expiatório” desempenhe um papel semelhante no local de trabalho também. Assim como as crianças, os adultos também podem detectar quem dentre eles é um alvo vulnerável para culpar e alijar.

O “bode expiatório” pode se ver mal remunerado e mais sobrecarregado do que seus colegas de trabalho. Pode ser deixado de fora durante as funções sociais do escritório. Pode ser responsabilizado por falhas no departamento, e ignorado quando merecia promoções e comendas.

Embora a qualidade do seu trabalho possa ser muitas vezes superior à de seus colegas, ele não será escolhido para participar de uma grande apresentação ou para atuar com líder de equipe. Suas avaliações como funcionário irão refletir a vontade de seus superiores de criticá-lo e avaliá-lo com mais rigor do que aos outros. Na melhor das hipóteses, o “bode expiatório” será ignorado e na pior será demitido.

Quando crianças, alguns “bodes expiatórios” respondem às situações “sem chance” a que foram submetidos, desenvolvendo um padrão de comportamento desafiador, ofensivo ou destrutivo. Isso pode criar sérias dificuldades na escola e no trabalho, bem como para a comunidade em geral. “Bodes expiatórios” aprisionados ao papel da “semente ruim”, podem se ver experienciando repetidas advertências e demissões dos locais de trabalho.

Se um “bode expiatório” desenvolveu o hábito de se meter em problemas, suas dificuldades com o trabalho e com os relacionamentos serão mais propensos a assumir a forma de conflitos e delitos relacionados à questões como: rebeldia,  comportamentos improdutivos e/ou destrutivos.

Apesar de algumas variações na forma como esse papel se manifesta, o “bode expiatório” nunca se “encaixa” confortavelmente em lugar algum. Ele é largamente menosprezado ou rejeitado, não importando o veículo ou a fundamentação (real ou imaginaria) para essa marginalização.

Os “bodes expiatórios” costumam procurar por psicoterapia muito mais do que qualquer outro membro da família. Um “bode expiatório” está profundamente acostumado a pensar que as coisas estariam bem se ele não fosse inerentemente defeituoso e indigno. Isso muitas vezes o leva ao consultório de um psicoterapeuta. (Em contraste, as narcisistas podem ser definidas por sua relutância em procurar uma terapia genuína.).

O “bode expiatório” normalmente considera que suas falhas foram a razão de seu companheiro ter sido insensível com ele (a), ou pelo seu patrão tê-lo enganado e não ter lhe dado o aumento prometido, ou por seus irmãos falarem “de cima” com ele.

Ele se sente desconfortável na escola, no trabalho e em situações sociais, pois ele acredita que é inferior. Muitos desses pensamentos convidam cenários de profecias “auto-realizadoras”, e acabam se manifestando. Isso torna mais difícil para ele ver que pode reverter esses padrões de maus tratos, pois esses maus tratos são resultantes de seus sentimentos de inferioridade e de suas inseguranças observáveis.

Ele culpa a si mesmo, como foi ensinado a fazer. Muitas vezes, isso o leva a buscar terapia, aonde talvez descubra a verdadeira razão de sofrer maus tratos na idade adulta. Afinal, não é a sua suposta inferioridade que o leva a situações degradantes, que reforçam seus sentimentos de inadequação, mas sim a carga palpável da vergonha e da rejeição familiar que ele carrega.

Ele não é ignorado e maltratado por ser realmente inferior aos outros. Isso acontece porque ele acreditou na mentira de que não é bom o bastante, e tem se comportado de acordo. Isso faz dele um alvo muito fácil para todo tipo de abusos.

Até que o “bode expiatório” consiga se livrar da mentira imposta pela família narcisista, de que é inerentemente ruim, culpado e errado… Ele vai lutar. Ele vai atrair as pessoas erradas. Ele vai deixar de atingir o seu potencial e ele será o seu pior inimigo.

Quando o “bode expiatório” começa a entender que os abusos e maus tratos que sofre não se devem a sua inerente inferioridade, mas sim as “mensagens de vulnerabilidade” que envia ao mundo… aí então, ele começa a se libertar do “lugar” que lhe foi designado pela família e a se curar da dolorosa herança de ter sido criado por uma mãe narcisista.

Por Light
Tradução e adaptação do original por Silvia Rawicz
“The Scapegoat”
Fonte atual: http://www.daughtersofnarcissisticmothers.com/